sábado, 8 de setembro de 2007

Desintegrar ou Integrar?

de João Silvério Trevisan, autor do clássico "Devassos no Paraíso"

Integrar-se ou desintegrar, eis a questão. Percorro o meio homossexual e não canso de me deparar com situações surpreendentes. Não, não vou falar de pegação (ou açougue) nos cinemas, parques e saunas -- não desta vez. Num debate promovido pelo CAEHUSP, dentro do seu ciclo de mesas redondas sobre homossexualidades, ouvi uma conversa que foi entusiasmando o público na mesma proporção em que ia me deixando de cabelos em pé. Como havia uma vereadora presente, alguém propôs com eloquência que ela encaminhasse junto à Câmara dos Vereadores de São Paulo os projetos de: 1) determinar uma praça para as bichas caçarem à vontade (sugeriu-se a Praça Roosevelt, pela proximidade de vários outros points gueis); 2) batizar ruas e criar monumentos com nomes de bichas e lésbicas eméritas. “Meu Deus, se mencionarem o meu nome, onde vou me esconder?” -- pensei, aterrorizado ante a possibilidade de estar entre as bichas eméritas. Não iria me esconder por timidez. É que eu execro monumentos de qualquer tipo, a qualquer pessoa. Na década de 70, quando morava no México, fiz meu único poema em espanhol, em homenagem a García Lorca, amaldiçoando as pedras dos monumentos feitos sobre nossos cadáveres, depois que nos atiraram pedras a vida toda. Mais recentemente, quase criei sérios problemas político-familiares quando o prefeito de minha cidade natal quis criar um centro cultural com o meu nome. Considerando que era período eleitoral, o centro seria inaugurado sem qualquer infra-estrutura, para ser fechado em seguida, e eu me sentiria manipulado. Mas, sobretudo, pesava a incongruência da minha situação: prestes a ser despejado do meu apartamento, sem dinheiro e solitário num país de merda -- mas com meu nome na fachada de um centro cultural!... Ou seja, tem algo de podre no reino da Dinamarca. Querem nos prestar homenagem? Pois que seja em vida, aqui e agora, sem motivo especial: a maior homenagem é nos deixar viver do jeito que somos, queremos e merecemos pelo que fizemos. Ou seja, reconhecimento real e não hipocrisia para descarregar consciências pesadas. Por isso, no tal debate, a convicção com que se reivindicava a consagração do gueto me pareceu uma burrice suprema. Ao contrário do que se pensava, não havia nisso libertação, mas confinamento: pode-se trepar, contanto que seja ali. Ora, faça um exercício de imaginação para pensar no que não nos estaria sendo pedido em troca, pois nada nos é dado de graça -- sejamos nós pobres ou pretos ou homossexuais ou, de algum modo, parte daquele grupo de cidadãos de segunda catergoria, tratados como a escória neste país de banqueiros e ruralistas. Ou não é ser escória ouvir piadinhas, amar clandestinamente, ter que esconder metade da sua vida, etc, etc. etc.?
(Sei que cada um de vocês pode fazer, por experiência própria, sua lista da repressão quotidiana que nos impingem.)
Pra mim, um fato é certo: não preciso que determinem um lugar onde eu possa caçar, simplesmente porque quero caçar em qualquer lugar da cidade. E quanto aos monumentos, recuso ser cooptado depois de morto. Vivo incomodando e tenho pago (alto) preço por isso: apesar de extremamente intensa e criativa, graças ao meu esforço, minha vida é cheia de dificuldades e humilhações (recentemente um jornal devolveu um artigo que eu, com 52 anos, escrevera a seu pedido; e me pagou -- para não publicar; tema: homossexualidade) . Portanto, prefiro que a sociedade -- que me puniu por ser bicha, pensar com a própria cabeça e escrever criativamente -- continue me tendo atravessado em sua garganta, mesmo quando eu já for cadáver.
Por que não pensar maior, para além do gueto? Criar, tirar do nada, inventar, não é o que fazemos a vida inteira? A partir de espaços rarefeitos e emoções recônditas, criamos e inventamos o nosso mundo incessantemente, para poder sobreviver no exílio em que nos meteram. Ou será que a discriminação que sofremos é apenas um faz-de-conta de gente mimada (que só pensa em trepar, como se diz por aí, a nosso respeito)? Será que não é prova de burrice sonhar em integrar-se na mesma sociedade injusta que nos oprime? Será que tudo o que queremos é partilhar da mesma mediocridade que nos empurra para as margens? Ah, a margem! Eis o ponto. Por menos que seja, o nosso grande trunfo é o olhar das margens que fomos obrigados a desenvolver. É esse olhar que nos fornece instrumentos para exercer a crítica à cultura e é graças a ele que podemos sonhar com (talvez propor) um mundo diferente. Nossa “doença” é o melhor que temos. Caso contrário, seria preferível casar, ter filhos e virar “saudáveis” executivos -- como fazem muitos “homens de bem”, ainda que continuem freqüentando saunas de viado, às escondidas. Integração? Não, obrigado. A sociedade tem que aprender não com nossa saúde forjada, mas com nossa “doença” -- aquilo que ela considera doença, porque a assusta e coloca em crise. Afinal, somos “doentes” quando ousamos transgredir, arriscando muito, quase tudo. E transgredir em nome de valores que estão muito acima da mediocridade medida pelo preço do mercado. Não é graças a esses valores que conseguimos sobreviver afetivamente no deserto, cavando com as próprias mãos o nosso amor e a nossa fé, todos os dias? Pois é com isso também -- nossa “doença”-- que construímos nossa singularidade individual. Portanto, chega de palavras-de- ordem, seja na publicidade que nos manda comprar para ser belos (consumir para ser mais consumível), seja nos discursos revolucionários de algibeira, ansiosos por substituir os ocupantes atuais do trono. Melhor, isso sim, tomar posse da nossa homossexualidade como um trampolim para a desintegração.
Desintegrar, por exemplo, equívocos como aquele do masculino baseado no culto fálico e na sua própria falta de saída. (Esse é um outro papo, a crise do masculino -- da qual as bichas somos ponta de lança, quando exacerbamos as contradições masculinas.)
Se temos uma função social própria, essa é desintegrar. Somos mestres em desintegrar, já que vivemos da desintegração. Nós construímos não contra ela mas graças a ela. Aprendemos a viver em meio aos fragmentos que nos deixaram sobrar. Os negros brasileiros sabem do que estou falando: pensem na feijoada, hoje prato nacional, criada pelos escravos com os restos de comida que recebiam. No caso homossexual, a singularidade está na repressão que sofremos desde pequenos. Pode parecer pouca porcaria. Mas não é. A sociedade, tal como constituída, dificilmente poderá nos aceitar em seu seio -- a menos que ela mude, coisa comprovadamente difícil; ou que mudemos nós -- tal como já fizeram milhares de pessoas no decorrer da História.
Essas são as duas alternativas possíveis. E digo por que a sociedade não pode nos engolir. Por mais que proliferem os bares, as danceterias, as saunas, os desfiles de moda, as peças/filmes/exposições e até mesmo os espaços na mídia, estaremos sempre sob vigilância estrita -- porque somos basicamente condenáveis. Socialmente, vivemos num ilusório bolsão de tolerância. Ou será que, na reforma constitucional brasileira você viu a esquerda votando a favor da opção sexual como um direito do cidadão? Será que já ouviu D. Evaristo Arns, o cardeal que adora ficar do lado dos oprimidos, reconhecer a opressão aos homossexuais? Será que você conhece algum organismo internacional ligado à ONU que defenda os direitos homossexuais no mesmo grau de legitimidade com que brande os direitos dos negros, das crianças, das mulheres, dos índios, etc.? Não. E duvido que vá conhecer tão breve.
Pelo mesmo motivo que até hoje não permitiu indenização aos homossexuais vítimas do nazismo, como aconteceu com outros grupos, fossem eles judeus, políticos e até mesmo ciganos. Ou pelo motivo que leva os delegados brasileiros a engavetar sistematicamente os casos de assassinatos de homossexuais. Será que você nunca notou o constrangimento mal disfarçado das campanhas contra a Aids, no tempo em que isso era basicamente doença de viado (que dá o cu, como o Paulo Francis fazia questão de frisar)? O motivo é simples. Para a atual sociedade moderninha, mesmo quando não afirma em voz alta, nós ainda significamos um bocado de coisas abomináveis. Eu poderia citar uma penca delas. Mas vamos nos concentrar apenas no denominador- comum que perpassa todas as condenações, discriminações ou omissões conhecidas: o prazer. Nós horrorizamos o mundo porque nossa grande reivindicação repousa sobre a liberdade de amar, um amor não procriativo, que visa apenas o prazer. Você poderá dizer que hoje isso não é privilégio nosso, já que a sociedade moderna assenta-se sobre o hedonismo e o consumo. Engano, pois o nosso prazer passa por outro viés: o do estigma historicamente consagrado-- como já analisei na SG nº 23. Nosso prazer é ultrajante. Está lá na Bíblia, mas também em leis americanas ou inglesas ou chinesas e na orientação seguida por muitos catedráticos de psicologia, até hoje. Além do mais, o prazer veiculado em nossas sociedades é sempre uma escapatória para a culpa. Culturas que têm como figura icônica um Deus sofrendo na cruz costumam ter problemas com o prazer puro e simples -- principalmente o sexual, sem pretensão reprodutiva. Por isso, fazemos emergir o lado sombra dessas sociedades baseadas na necessidade do sofrimento. Despertamos seus demônios adormecidos. Elas adoram nos crucificar porque ousamos nos contrapor à crucifixão (e, às vezes, pervertemos a própria dor, ao substituir Cristo por São Sebastião -- aquele todo flechado, que suspira de amor).
Em resumo, para ela nós não temos conserto. E isso nos outorga uma grande vantagem: somos fascinantes objetos do desejo recalcado da sociedade. Enquanto formos proibidos, estaremos também encantando. Ou alguém duvida que quanto mais proibido mais desejado? É a lei da culpa. Há muito tempo a humanidade vem exorcizando através do horror ao nosso “desvio” seu próprio desejo de transgredir. Somos o espelho de sua transgressão, por nós atualizada.
Quando a sociedade vai nos integrar? No dia em que formos suficientemente integráveis. E, repito: pagando um preço. Pense em quanto vai ser preciso dar em troca. Exercite sua imaginação: faça uma lista. No final, você verá que o Paraíso Social tem cara de papai-mamãe -- que poderá ser papai-papai ou mamãe-mamãe. Mas sempre se exigirá que a gente se coloque no nosso lugar, quer dizer, o lugar à margem que a sociedade nos ofereceu, sobretudo quando delimita nosso espaço. Porque lá é o lugar dos transgressores que somos, gostemos ou não.
Portanto, será preferível continuar criando Vida nessas inóspitas margens. Foi o que muita gente extraordinária fez. Foi o que Safo fez. Sócrates fez. Michelângelo. Tchaikovsky. Virginia Wolf. Pasolini. Marguerite Yourcenar. Mário de Andrade. É outra lista longa. Informe-se e faça a sua própria. Vai ser delicioso saber que você nunca esteve só -- parte do seu verdadeiro mundo, não daquele onde nos querem enfiar. E haja listas!

(Publicado na revista SUI GENERIS; julho/1997, nº 25; e como apêndice do meu livro DEVASSOS NO PARAÍSO, Ed. Record, 2.000)

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